22.9.08

[UMA VIDA A LUTAR POR NADA]


Marcel Duchamp, Nu descendo uma escada.


Um relato verídico de uma vida a lutar por nada...

"Aos meus alunos, aos Pais dos meus alunos, aos professores e a todos os meus concidadãos.

Tenho cinquenta e tal anos de idade, trinta e muitos dos quais como docente no ensino secundário e no ensino superior. Fiz a Licenciatura com 16 valores, o Estágio Pedagógico com 18 e um mestrado em Ciências da Educação com Muito Bom. Dediquei a minha vida à Escola Pública. Fui Presidente do ConselhoExecutivo (dois mandatos), orientador de estágio pedagógico (3 anos), delegado de grupo / coordenador de departamento (dois mandatos), Presidente do Conselho Pedagógico (um mandato) e director de turmadurante vários anos. Nos últimos tempos leccionei no ensino superior, com ligação permanente à formação de professores. Desempenhei vários cargos pedagógicos, participei em múltiplos projectos e desenvolvi doistrabalhos de elevado valor científico. Entretanto, regressei ao ensino secundário e à minha escola de origem. Alguns dos antigos colegas, embora mais novos do que eu e com menos tempo de serviço (compraram o tempo, explicaram-me depois) já setinham reformado. Eu também já tinha idade, mas faltavam-me algunsmeses para o tempo necessário quando mudaram as regras do jogo. E comose não bastasse a alteração dessas regras, é aprovado, entretanto, umnovo estatuto para a carreira docente. E logo de seguida é aberto oconcurso para professores titulares. Um concurso para uma novacategoria onde eu não tinha lugar!Não reunia condições. Mesmo com um Mestrado em Ciências da Educação esem ter dado uma única falta nos últimos sete anos, o meu curriculumvalia, apenas, 93 pontos! Faltavam 2 pontos para o mínimo exigido aquem estivesse no 10º escalão. Com as novas regras, o meu departamento passou a ser coordenado, apartir do presente ano lectivo, por um professor titular. Um professorque está posicionado no 8º escalão. Tem menos 15 anos de serviço doque eu. Foi meu aluno no ensino secundário e, mais tarde, meuestagiário. Fez um bacharelato com média de 10 valores e no estágiopedagógico obteve a classificação de 11 valores. Recentemente concluiua licenciatura numa estabelecimento de ensino privado, desconhecendo aclassificação obtida. É um professor que nunca exerceu qualquer cargopedagógico, à excepção de director de turma. Nos últimos sete anos deu84 faltas, algumas das quais para fazer 15 dias de férias na RepúblicaDominicana (o atestado médico que utilizou está arquivado nasecretaria da escola, enquanto os bilhetes do avião e a factura do hotel constam de um outro processo localizável). O seu curriculum vale 84 pontos, menos 9 pontos do que o meu. Contudo, este docente foi nomeado professor titular. De acordo com o Senhor Primeiro Ministro e demais membros do seu Governo, com o apoio do Senhor Presidente da República e, agora, com o apoio dos dirigentes sindicais, este professor está em melhorescondições do que eu para integrar ' (...) um corpo de docentes altamente qualificado, com mais experiência, mais formação e mais autoridade, que assegure em permanência as funções de organização dasescolas para a promoção do sucesso educativo, a prevenção do abandono escolar e a melhoria da qualidade das aprendizagens. 'A conclusão, embora absurda, é clara: se eu estivesse apenas no 9ºescalão, e com os mesmos pontos, seria considerado um docente altamente qualificado, com mais experiência, mais formação e mais autoridade. Como estou no 10º escalão, e não atingindo os 95 pontos,eu já não sou nada.Isto é o resultado de uma selecção feita com base na '(...) aplicaçãode uma grelha de critérios objectivos, observáveis e quantificáveis, com ponderações que permitam distinguir as experiências profissionaismais relevantes (...) [onde se procurou] reduzir ao mínimo as margensde subjectividade e de discricionariedade na apreciação do currículodos candidatos, reafirmando-se o objectivo de valorizar e darprioridade na classificação aos professores que têm dado provas demaior disponibilidade para assumir funções de responsabilidade.'Éassim que 'reza' o DL 200/2007, de 22 de Maio. Admirável! Agora consta por aí (e por aqui) que aquele professor (coordenador do meu departamento) me irá avaliar... Não, isso não será verdade. Esse professor irá, provavelmente, fazerde conta que avalia, porque só pode avaliar quem sabe, quem for maiscompetente do que aquele que se pretende avaliar. O título de 'titular' não é, só por si, suficiente. Mesmo que istoseja só para fazer de conta... Conhecidos que são os meus interesses, passo ao principal objectivo desta carta, que é, simplesmente, pedir perdão! Pedir perdão, em primeiro lugar, aos meus alunos. Pedir perdão a todosos Pais dos meus alunos. Pedir perdão porque estou de professor, massem me sentir professor. Tal como milhares de colegas, humilhados e desencorajados, sinto-me transformado num funcionário inútil, à esperada aposentação. Ninguém consegue ser bom professor sem um mínimo de dignidade. Ninguém consegue ser bom professor sem um mínimo de paixão.As minhas aulas eram, outrora, coloridas, vivas e muito participadas. Com acetatos, diaporamas, vídeos, powerpoint, etc. Hoje é, apenas, o giz e o quadro. Só a preto e branco, com alguns cinzentos à mistura. Sinto-me desmotivado, incapaz de me empenhar e de estimular. Recei o vir a odiar a sala de aulas e a própria escola. Receio começar afaltar para imitar o professor titular e coordenador do meudepartamento (só não irei passar férias para a República Dominicanaporque tenho outras prioridades...). Receio que os professores deste País comecem a fingir que ensinam e a fingir que avaliam. Sim, porqueneste país já tudo me parece a fingir. Cumprimentos."

(o autor deste texto é um professor anónimo e humilhado, tal como milhares de outros professores).


Obrigada L. Torgal por teres mandado e-mail.






2 comentários:

Anónimo disse...

Nu descendo uma escada a caminho da cadeira eléctrica da profissão. Joaquim G.

Anónimo disse...

Apesar de tudo vale a pena lutar em nome da liberdade de expressão. Obrigada Isabel Maria.