Devo dizer que gosto de cretinos. Não, garanto que não é por piedade mas por apreço convicto. Talvez com uma pontinha de malícia mas sem acinte nem ferrete. Uma (como dizer?) maneira de tímida ternura.
Afinal – não é verdade? – o cretino é uma espécie humanóide altamente meritória e multifacetada: vive connosco à mão de semear, conhecemo-lo das ruas, vemo-lo na TV, lemo-lo nos jornais… Ele acompanhou sempre nos mais expressos lugares a rude humanidade desde o fundo dos tempos, desde os primórdios da vida. À roda da fogueira lá nas épocas longínquas do período quaternário quando ainda não havia cretinices modernas (televisão, rádio parlamento…) podeis crer que já havia, embora hirsuto um ou outro cretinus sapiens. E pelos tempos fora na idade dos ancestros da pré-história que seria dos inícios adequados da social organização sem um par de cretinos a adorná-la? Seja na arte ou na literatura nos ramos do saber que o mundo louva ou demais regras e ofícios como poderiam os cretinos dispensar-se? Cretino foi, ao acaso o tolo do Caim, ou o pobre do Job ou – na quadra das letras – o bom do Pinheiro Chagas que teve a parvoíce de ser contemporâneo do Eça magricelas. E nos domínios vicejantes da pintura o tremendo Bouguereau, que dizia de Cézanne que este só fazia borradelas. Ou nos salões do espírito sagrado magistral Bossuet, a águia de Mons que Deus tenha bem guardado. Enfim, nobres exemplos de douta cretinice. Pois o cretino é plural e em todo o lado sabe imiscuir-se. (Aqui um aparte para os estudiosos de gabinete: não deve confundir-se o propriamente cretino, cretinus boçalis, com o pedaço-de-asno que, sendo semelhante – a olhares sem estética – claramente pertence a outra espécie cinegética.) Na boa sociedade, naquilo a que se chama a melhor sociedade, a tal que se pauta por livros de etiqueta escritos em geral por excelentes senhoras – às vezes excelentes cretinas – o patarata é um valor seguro: já pensaram que seria das páginas sociais de afidalgados ou mesmo só de notáveis burgueses agregados sem um ror de cretinos e cretinas interessados em lhes saber da folha, em lhes saber dos fados? A vida sem cretinos é como um lar sem pão, teatro sem enredo, jardim sem flores ou passarinhos (olha que imagem cretina!), como dizem as poetisas de arrabalde com vaporosa graça quase divina. Numa recepção de Estado, no salão duma autarquia, numa cerimónia de homenagem a um que nada fez mas morreu tarde ou demasiado cedo, co’os diabos do talento seja na capital ou na feliz província a presença de cretinos é uma jóia sem preço: são os que convictamente mais aplaudem, sem maldade nem cálculo traiçoeiro ou gritam apoiado criando felicidade no elenco inteiro ou mais valia, nas forças vivas da cidade. (E em geral, por ironia do destino o orador habitual é que costuma ser, por sinal o maior cretino!)
Sim. Gosto de palonços. Ei-los que desfilam: na política, no professorado res publica (que, como se sabe, significa coisa pública – dou o esclarecimento não esteja algum cretino a ler-me) o palonço é fundamental. Quem diz palonço diz palonça (explico já não vá alguma feminista cretina pensar que o meu poema a discrimina).
O cretino estimula as próprias artes, as próprias letras. Até a filosofia! Lembremos as expressões fenomenal cretino, cretino piramidal, cretino apimentado, cretino até dizer basta. Enfim, altos jogos verbais como tudo o que o humano engenho inventa. Já houve quem dissesse que ele é como as castanhas: nem sempre as maiores são as mais saborosas! Os cretinos rurais… Os cretinos citadinos… Os cretinos intermédios sociais, profissionais… Os viandantes cretinos… Enfim, não divaguemos!
Vou, então, terminar. Meter um ponto final antes que, impaciente o leitor inteligente me apode gentilmente de redundante ou, até, de chatarrão – espécie de parente maganão que também merece versos!
Nicolau Saião, in “Poemas Omnívoros”
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