Perigosas, elas, as mulheres, porque lêem? Perigosas porquê? Porquê elas e não eles? O livro Mulheres Que Lêem São Perigosas (Quetzal/Círculo de Leitores) lança o debate. Autor: Stefan Bollmann, doutorado com uma tese sobre Thomas Mann. Prefácio: Elke Heidenreich, escritora e autora do programa televisivo Lesen!. Lançamento: amanhã, às 18.30, na Livraria Bertrand Picoas Plaza (Rua Tomás Ribeiro, 65) na mão de quatro mulheres apresentadas pela editora como "perigosas": Helena Vasconcelos, Maria João Seixas, Maria Teresa Horta e Paula Moura Pinheiro.O álbum reúne imagens de mulheres que lêem, vestidas ou nuas, meninas, jovens ou sem idade, sentadas, deitadas ou recostadas, absorvidas, apaixonadas ou seduzidas pelo poder mágico dos livros que acumulam, como escreveu Marguerite Yourcenar, "reservas contra os invernos do espírito", ou do talvez corpo, quando a vida se torna semelhante ao deserto e as palavras trazem consigo a presunção sublime da suspensão, ainda que por instantes, do peso entediante dos dias."Ler não é, afinal, diferente de existir", tal como diz Rui Magalhães em Infinito Singular/O não literário: "Podemos ler um texto, podemos ler um corpo: podemos viver um texto ou um corpo. Ler um corpo: recuperar, na visão incerta, a plenitude da fragmentação e da pluralidade."É essa dimensão da inseparabilidade entre vida e arte (ideia passível de aplicar-se também à escrita) que encontramos num esboço, de nenhuma forma exaustivo e nem sempre preciso, em Mulheres Que Lêem São Perigosas. Que ressalta, afinal, deste livro em que nos aproximamos da profunda intimidade da leitura, sem qualquer sentido de ameaça, como quem descobre o mistério de mundos outros? A revelação de que a beleza dir-se-ia representativa do triunfo da arte enquanto acto de paixão. Façamos então uma viagem por dentro do livro, uma viagem provocatória pela mão da feminista Elke Heidenreich, autora que tem o atrevimento de dizer: "Com o passar dos anos, os livros tornam- -se por vezes mais importantes do que os homens." Ou saltemos paras as páginas do ensaio, mais reflexivas portanto, e das legendas de Stefan Bollman, que considera a leitura intensiva "um desafio à liberdade criativa".Pinturas, desenhos, fotografias, imagens recolhidas ao longo do tempo, do séc. XIII ao séc. XXI, reflectem a relação entre as mulheres e os livros. Observe-se a Anunciação, de Simone Martini (1333) em que Maria - dominando a arte comum entre as mulheres cultas na Idade Média, a da leitura em silêncio - exprime desagrado, aconchegando o manto ao peito, quando o anjo, inoportuno, interrompe a sua leitura. Ou veja-se, mais tarde, no séc. XVII, apaziguada, a criada de costas viradas para o leitor, no quadro de Pieter Janssens Elinga. Libertando--se das incómodas socas, suas ou da dona da casa, e do peso ordenado das tarefas domésticas, entrega-se ao prazer do livro que a luz indirecta torna iluminante, enquanto se esquece, alheada, da fruteira, posta de parte em cima da cadeira.Mais adiante, Katie, cabelo lon- go e encrespado, devora, absorta e com paixão, a lenda sangrenta de S. Jorge, que luta com o dragão e o mata, tema impróprio no século XIX para raparigas. Sir Edward Burne Jones começou a pintar este quadro tinha a menina do desacer- to quatro anos e, quando o termi-nou, já havia completado os oito.Não falta, por outro lado, nestas páginas, a mulher, retratada por Ramón Casas Carbó, que cai exausta, no sofá, vinda do baile, de livro na mão, como se fosse possível fazer prolongar, naquele breve momento, o prazer de um corpo ainda em movimento de outros saberes/sabores da vida. A fotografia de Eve Arnold, exibindo Marilyn, ao tempo da rodagem de Os Inadaptados, lendo o Ulisses, revela a mulher na sua total fragilidade. Quando se encontraram, ela e a fotógrafa, a actriz já estaria a ler a obra de James Joyce. E assim foi captada pela máquina num flash luminoso que nega o estereótipo. Há, no entanto, que entender este belo volume à luz da breve história da leitura que nos é oferecida por Stefan Bollman. Lance-se, pois, um olhar rápido sobre a história da cultura e verifique-se o silêncio a que a mulher foi votada ao longo dos tempos, vedando-se-lhe o direito à instrução e ao trabalho, sem esquecer o texto áspero e divertido de Elke Heidenreich: "Quem lê fica a reflectir, quem reflecte forma uma opinião, quem tem uma opinião pode dissidir, quem se torna dissidente passa a ser inimigo." Só assim pode integrar, nesta obra, a designação "leitura perigosa", sobretudo a partir da evolução histórica, social, cultural.Bollman explica, por outro lado, que as mulheres que aprendiam a ler (referindo-se aos finais do século XVII) eram, na época, consideradas perigosas: "É que a mulher que lê adquire um espaço a que só ela e mais ninguém tem acesso", o que a leva a desenvolver um estado independente de auto-estima. Além disso, "cria a sua própria visão do mundo, não necessariamente correspondente à transmitida pela tradição, nem à dos homens". Claro que nada disto significa ainda a sua libertação da tutela patriarcal, "mas abre a porta que conduz à liberdade", comenta.Já no século XVIII, Mary Wollstonecraft, mãe de Mary Shelley (autora de Frankenstein) escrevia: "Não só a virtude, mas também o conhecimento devem ser iguais em natureza, e mesmo em grau." Nesse sentido, pode dizer-se que a mulher, usando a expressão de Ana Hatherly, foi tomando a palavra ao longo dos tempos. Usando os livros como aliados.Com eles, as mulheres deste livro amam, vivem vidas outras, a ficção e o sonho, o perigo e a paixão. Eles são o vício e a virtude, a sageza e o refúgio, caixa de ressonância da interioridade das suas fiéis leitoras.
31.5.07
[PERIGOSAS DE TANTO LEREM...]
Publicada por I s a b e l M a r i a D o s à(s) 31.5.07
Etiquetas: Literatura, Opinião
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